
PAISAGENS QUE DÃO TANTA BELEZA À VIDA, ABULIA E ESQUECIMENTO
Para combater o excesso de peso, e a ferrugem dos músculos e articulações, males provocados pela idade e pelos excessos alimentares, muitas vezes na companhia de amigos e camaradas, faço muitos passeios sozinho, em marcha forçada, no Parque da Cidade que fica perto da minha casa. Habituado desde muito jovem na minha aldeia, às longas caminhadas que me levavam a todos os sítios da sua área agrícola e florestal, ultimamente comecei a sentir saudades desses espaços mais amplos e diversificados, com outra lonjura dos caminhos do Parque, que consigo percorrer numa hora.
Pelo prazer das caminhadas, dos espaços amplos e das paisagens que entram pelo olhar e dão tanta beleza à nossa vida, recordo-me também dos anos da Guiné e das caminhadas que fiz por lá, com melhores pernas do que actualmente.
Porto - Vista do Parque da Cidade
Nos primeiros meses em Buba, fiz grandes caminhadas com o pelotão, que já mostrava alguns sinais de cansaço para acompanhar o periquito, que eu era, pois eles já tinham sete meses de mato.
Sem nunca sair para fora da área que estava atribuída à companhia eu achava que devia ter conhecimento do terreno, para maior segurança psicológica, pela utilidade que poderia ter nalguma emergência, por outro lado era também levado pela curiosidade em explorar as paisagens de floresta e bolanha que me rodeavam. Nesses longos "passeios" tivemos a sorte de nunca nos cruzarmos com o inimigo, e confesso que como amante da vida ao ar livre e da natureza, foi das melhores experiências que tive na Guiné.
Problemas e azares, de que já falei, houve depois, nos últimos meses da comissão, para lá dos ataques mensais ao aquartelamento, que o Nino Vieira parecia fazer para cumprir calendário, que nos assustavam mas nunca magoavam ninguém. A norte da bolanha dos Passarinhos, que tínhamos que cruzar na estrada de terra batida, que nos ligava a Nhala, para fazer protecção às frequentes colunas de reabastecimento, havia uma enorme bolanha, que já não recordo se seria a sua continuação ou outra. Nesta grande área de bolanha só estive uma vez, com toda a companhia e terá sido das poucas vezes que o capitão saiu. Gostei muito de conhecer esse enorme descampado pouco arborizado e rodeado de floresta, talvez por alguma nostalgia da parte planáltica da minha aldeia, onde se cultivava o trigo e o centeio.
A nossa imaginação transporta para toda a parte as cópias das gentes e das paisagens onde nascemos e fomos criados e gostamos de as encontrar projectadas noutros ambientes. Fui algumas vezes na direcção de Fulacunda, que sendo bastante distante de Buba, parecia-me que havia entre as duas tabancas, muita terra de ninguém que poderia ser controlada pelo PAIGC. Fulacunda que talvez por ter um nome sonante e quase mágico e pela vizinhança confinante com Buba ainda que um pouco distante, sempre foi para mim um mistério a despertar a minha curiosidade.
O José Teixeira, que fez tropa em Buba, antes de mim, e é um grande andarilho, que já voltou algumas vezes à Guiné, falou-me duma povoação nessa direcção, não muito longe de Buba, controlada pelo inimigo, segundo testemunho que recolheu junto de habitantes dela. Nunca soube ou não me apercebi da existência dessa tabanca. Saindo de Buba, próximo da pista de aviação, havia um troço de estrada abandonado, onde já crescia algum mato, que segundo parece não levava a parte nenhuma, que eu nunca percorri em toda a sua extensão até por ser um caminho muito exposto. Terá sido uma tentativa frustrada de abrir uma estrada, no tempo de companhias anteriores, na direcção de Aldeia Formosa.
Na direcção de Empada, a sudoeste, só me recordo de ter ido duas vezes com dois pelotões, numa espécie de patrulhamento sem outro objectivo definido, que não fosse observar se haveria vestígios da passagem ou actividade do inimigo, que por vezes nos atacava dessa zona, ainda perto do quartel, do outro lado do Rio Grande Buba.
Paisagem da Guiné - Pôr-do-sol no Pelundo
Foto: © António Teixeira
Depois de Buba, rumei para Mansabá, recomendado, por erro de casting, como bom combatente, como me chegou a dar a entender o Capitão Abreu, Comandante do COP, e para aborrecimento do capitão miliciano da companhia, que chegou uns dias depois de mim, Economista na vida civil e que tinha tanto jeito como eu para a vida militar. Bom homem esse capitão, pois se ele fosse rigoroso na aplicação do RDM, eu provavelmente teria cumprido mais alguns meses de Guiné.
Mal recordo a actividade operacional. Lembro-me de fazermos uma operação, no sentido contrário à mata do Morés, não recordo qual o objectivo. Sei que andei muito tempo a pé por uma mata bastante densa e não me recordo porque motivo cheguei a andar de helicóptero, talvez para ver a paisagem.
Foi nessa ou noutra operação, que de manhã cedo a companhia estava toda formada na parada à minha espera, e o capitão danado pela minha demora, e eu a chegar impassível e abstracto a olhar para ele.
Já escrevi algures no blogue que por muita pena minha nunca pude entrar na mata do Morés, por proibição conjunta do PAIGC e das autoridades militares, já que nessas operações somente eram utilizadas tropas especiais. Mas eu gostaria tanto de conhecer essa grande extensão de floresta, de preferência sem tiros nem bombas.
Pelo prazer que sempre tive em conhecer os campos e florestas da Guiné, se revelam as minhas origens camponesas. Se pudesse tinha dado a volta a toda a Guiné a pé.
Por causas várias que talvez não consiga analisar objectivamente, ou porque isso não me agrade agora, reconheço que nos meses passados em Mansabà, já estava um pouco "apanhado pelo clima" e o meu comportamento reflectiu bastante isso, confirmado recentemente pela minha irmã, mais próxima da minha idade, que há dias me falou do meu regresso a casa.
As nossas irmãs, essas jovens que desde cedo desenvolviam em relação a nós, uma mistura de sentimentos fraternais e maternais e alguma admiração e curiosidade pelas nossas diferenças físicas e psicológicas.
As nossas irmãs, que nesses anos de aflição das famílias, acrescentavam tanto carinho e afectividade à que nos era dedicada pelos pais e que, segundo ela, eu tratei com tanta indiferença quando regressei. Nunca demos muito realce ao amor e sofrimento dessas jovens como se elas fossem obrigadas a isso por dever familiar. Tantos anos passaram e só agora esta irmã me fez esta "queixa", que surgiu somente, por acaso, no decorrer de uma conversa sobre o passado comum.
Outros factos que não sabia e outros que esqueci, por exemplo que a minha mãe chorava muito porque eu não dava notícias, e ela culpava as filhas por me escreverem pouco quando isso até não seria verdade. Note-se que a nossa mãe tinha a quarta classe mas bastante ocupada nas múltiplas tarefas que tinha que fazer no lar, cozinhar, costurar, chulear, tecer e outras, entre as quais ir na burra à horta, uma grande paixão para além dos filhos, encher as alforjes com as diferentes qualidades de hortaliça, atribuía a responsabilidade da escrita dos aerogramas às filhas.
Talvez esse estado de espírito, de que falei, em que se misturava abulia e esquecimento tenha varrido da minha memória muito do que se passou e vivi em Mansabá. Algumas recordações conservo e já aqui falei delas, sobretudo a cordialidade e camaradagem que senti da parte de todos.
Durante muitos anos, como muitos camaradas, voltei as costas à Guiné, quis esquecê-la e riscar da minha vida os dois anos que por lá passei. Há três anos, com a descoberta do blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" e com a premência causada pelos dias intermináveis dos primeiros meses da reforma e o avançar da idade, comecei a sentir mais a necessidade de fazer um balanço da minha vida pelo que tentei explicar e integrar esses dois anos na corrente e sucessão dos outros de forma a reconciliar-me com a memória dos tempos de brasa da juventude.
Um abraço.
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15737: Blogoterapia (274): Portas estreitas da vida onde nem sempre se consegue passar (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto, CART 3493, Mansambo, Fá Mandinga, Bissau, 1972/74)