
As minhas memórias de Gabu
Companhia de milícias guineenses jurou bandeira
Dia de ronco
A plateia estava bem composta e o dia era para celebrar a passagem a pronto de uma companhia de milícias africanos, sendo que o pessoal de Gabu correspondeu em pleno a um acontecimento que resvalou para uma jornada de ronco.
Na parada do quartel novo de Gabu, Nova Lamego, os pelotões marcharam, apresentaram armas, juraram bandeira e comprovaram fieldade ao exército português. Na retaguarda os civis não perderam a oportunidade em assistir ao evento e as mulheres grandes, as bajudas e os homens, alguns ostentando o traje da sua condição de régulos, lá fizeram a festa.
Afirmo, seguramente, que as vestes das mulheres transmitiam coloridos encantadores, próprios, aliás, de uma África próspera em esplêndidos encantos. As bajudas, essas meninas deslumbrantes, mostravam, vaidosas, a sua “mama firme” e lançavam piropos sobre o enviesado marchar dos rapazes da tabanca que, esporadicamente, lá trocavam o passo.
Recordo, com alguma intensidade, o inolvidável momento. O quartel encheu-se de gentes que aplaudiram o “esforço” ofertado à Pátria pelos soldados guineenses. A tropa, para eles, era sinónimo de uma maior estabilidade quer ela se tratasse pelo angariar de uns magros pesos ou mais uma “mão-cheia” de arroz que tanta falta fazia no seio familiar.
Citei, intencionalmente, a palavra Pátria porque naquele tempo poucos ousariam contradizer os poderes políticos instalados. Batiam-se palmas aos discursos escutados pelos “maiorais” e apelava-se ao sentido nato da defesa integral de uma Nação que se confrontava com três frentes de guerra no Ultramar.
Mas tudo era, ou parecia, absurdo. Sintetizando o conteúdo da mensagem que o bom do soldado lusitano conheceu, rompemos as amarras do tempo e falemos abertamente que a tropa nativa formava um esquadrão que via no exército da Metrópole um meio para satisfazer uma imensidão de caridades que o seu extrato social carecidamente impunha.
Ora, é lógico que elogiemos a sua camaradagem, bem como aquela doada por uma população que demonstrava a sua inequívoca gratidão. A guerra, por outro lado, partilhava instantes insólitos e de autênticas disparidades. Com eles, camaradas guineenses, aprendi uma imensidão de circunstâncias que me ajudaram a conhecer o teor de uma peleja onde a imprevisibilidade de um adensado mato se apresentava literalmente como um verdadeiro enigma.
Sendo o dia de ronco, e com a entrada do quartel franqueada ao povo, deixo nesta temática, que por ora trago à estampa, três fotos: a primeira comigo (à direita), com o alferes Santos, oficial de dia, ao meio, e à esquerda um camarada furriel miliciano mecânico, que não recordo o seu nome. As outras fazem parte do convívio com a população.
Remato a narrativa com a pertinente questão que ainda hoje nos ocorre à memória e que, por vezes, serve de diálogo: Qual terá sido o futuro daqueles mancebos que naquele dia, 14 de março de 1974, juraram bandeira sob a proteção de uma Pátria distante e sabendo-se que no mês seguinte, em Lisboa, a ditadura caiu e a Revolução dos Cravos estourou, dando-se o memorável 25 de Abril e, naturalmente, a entrega das antigas colónias ultramarinas aos movimentos que ao longo dos anos lutaram no terreno em defesa da sua liberdade?
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
7 DE FEVEREIRO DE 2016 > Guiné 63/74 - P15717: Memórias de Gabú (José Saúde) (60): A fuga