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Channel: Luís Graça & Camaradas da Guiné
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Guiné 63/74 - P14682: Efemérides (191): Aquele dia inextinguível (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52)

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1. Em mensagem do dia 24 de Maio de 2015 o nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) lembra o dia 19 de Março de 1969, quando Missirá ardeu durante um ataque do PAIGC.


Aquele dia inextinguível

Beja Santos

Tinha 24 anos quando vivi uma epopeia, não me aconteceu outra. Em 19 de Março de 1969, pela calada da noite, uma flagelação bem acontecida, com muita bala incendiária certeira no colmo ainda quente das moranças, destruiu praticamente Missirá, transformando-a em terra calcinada. Vários prodígios convergiram: o envio generoso de muito material do Batalhão de Engenharia, nunca vi em dias da minha vida tanta chapa ondulada, esquadrias de portas, sacos de cimento; a humilhação e a dor eram tais que garanti a mim próprio que haveria tempo para tudo: para ir a Mato de Cão diariamente, para abastecer as gentes do Cuor, e para se reerguer Missirá.

O que aconteceu, entre finais de Março e meados de Junho. Vários ventos sopraram de feição: houve uns chuviscos a debutar a época das chuvas, protegeu-nos todos os tijolos de adobe, nada se estragou; não houve férias para ninguém, não se celebraram choros, ninguém partiu nem para semear nem para colher, não houve contestação àqueles horários draconianos, cedo erguer e todo o dia movimentação, quem patrulhava entrava à mesma nas escalas de serviço, até para ir buscar água. E um dia, nos tais meados de Junho, percorri pelas novas moranças, pelos novos abrigos, telheiros e armazém, tudo a cheirar a fresco, obra de uma convocatória que obteve uma resposta tão incendiária como aquele desalmado incêndio que reduzira mais de três quartos de Missirá a um escombro.

Também houve tempo para a escrita. Perdi tudo no incêndio, vivia por empréstimo no abrigo do furriel Casanova, uma construção modelo que era motivo do seu legítimo orgulho, desmanchara a casa de Manuel Spencer em Malandim, entre Finete e a estrada para Mato de Cão. Daqui expedi os meus aerogramas meses a fio. A minha tia Carlota fazia anos a 1 de Junho e não deixei de a saudar, tinha por ela uma grande adoração, foi por seu intermédio que ganhei a paixão pelos azulejos pombalinos e pela arte do leque. Ter-lhe-ei dado uma versão adoçada do que era a minha vida, ele era mais que septuagenária, torneei os sobressaltos. E nunca mais pensei no assunto.

Aqui há alguns anos, telefona-me a minha prima Madalena, a sua única neta, houve conversa animada até que chegámos ao essencial: olha, Mário, imagina tu que abri um livro da minha avó e saltou de lá uma folha, era uma cartinha tua a dar-lhe os parabéns, tu estavas muito feliz, muito animado, falavas de umas obras muito grandes e a certa altura escreveste que tudo o que tinhas feito até então eram insignificâncias, que pela primeira vez na vida tinhas um grande desafio pela frente, que estavas cheio de fé e as pessoas que contigo viviam pareciam contagiadas, e davas graças a Deus, olha, não percebi bem o que te estava a acontecer mais era uma escrita tão exaltada que me deixou comovida, vou-te enviar esta carta que me encantou e estou absolutamente certa que deixou a minha avó feliz.

Tinha 24 anos, vivi uma epopeia de braço dado com militares e civis inesquecíveis. Nunca mais terei um aniversário como aquele, a ver crescer, a derrubar o touro da morte e a sentir o tutano da camaradagem. É por isso que quando me vem uma contrariedade há logo um rebate: lembra-te o que se passou naquele tempo em 1969, aquele teu dia de anos em que foste a Mato de Cão, vieste por Finete, regressaste a Missirá, discutiste com os teus colaboradores as obras, os pagamentos, o trivial da burocracia e como adormeceste cansado e enriquecido pelo dever cumprido. Que sejam assim todos os dias que Deus te deu para cumprir.

Quebá Sissé, conhecido por “Doutor”, o cozinheiro de Missirá. 

Fotografia do início do Março de 1969, todo aquele fundo irá desaparecer, dias depois aquele balneário era indescritível, aquelas chapas rasgavam a carne a qualquer descuidado. Procurei-o em 2010, disseram-me que vivia para os lados de Farim, que estava muito velho e cansado. Tenho muitas saudades do meu querido cozinheiro, um bonzão com as crianças a quem cedia as nossas sobras.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14680: Efemérides (190). O ataque a Bambadinca foi há 46 anos, em 28/5/1969, recorda o barbeiro mais famoso de Dalvares, Tarouca, o Manuel da Costa, que foi sold maqueiro, CCS/BCAÇ 2852 (1968/70)

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