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Channel: Luís Graça & Camaradas da Guiné
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Guiné 63/74 - P16142: Manuscrito(s) (Luís Graça (84): Por que te calas, camarada ?

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Por que te calas, 
camarada ? (*)

por Luís Graça (**)
  


O meu pai, Luís Henriques (1920-2012), 
também andou "lá fora", 
no ultramar,
a defender o Império, a Pátria,
durante a II Guerra Mundial, 
em Cabo Verde, São Vicente, Mindelo, 
entre 1941 e 1943...

Cresci, fascinado, 
a folhear o seu álbum de fotografias,
que andava lá por casa, escondido, 
numa gaveta, 
entre papéis velhos...
Mas ele nunca me sentou ao colo
e me explicou, tim por tim,
por que terras e mares tinha passado,
por que é que andou a "engolir pó" 

até ficar doente dos pulmões
(dir-me-ia mais tarde),
durante 26 meses,
lá nessa terra distante, semidesértica,
enfim, não me contou as histórias desse tempo, 
do seu tempo de menino e moço,
ainda eu não era nascido...

Afinal, era eu que as tinha que adivinhar, 
fantasiar,
criar as minhas próprias histórias, 
enredos,
personagens, 
mesmo se muitas dessas fotos tivessem legendas, 
lacónicas no verso,
escritas a tinta verde: 
o Monte Cara, 
o ilhéu dos pássaros,
o Porto Grande, 
os navios hospitais italianos,
o vapor Mouzinho de Albuquerque, 
o tubarão, 
o macaquinho fugido da fome de Santo Antão, 
o cemitério da tropa, 
os exercícios, 
as paradas, 
as antiaéreas,
os cavalos, 
o senhor ministro das colónias,
as meninas da lá terra, as bias,
em fatinho de chita, domingueiro,  de ir à missa...
Mas, como eu era puto, 
e mal sabia ler, 
e muito menos sabia de história e geografia,
não entendia nada...

Cresci, arranjei outras brincadeiras,
na rua do Castelo da minha terra,
 e do largo do Convento,
que era o mundo que eu conhecia e pouco mais,
esqueci o álbum das fotos da tropa do meu pai,
mas não pude esquever a guerra
que, já adolescente, me coube em sorte...

Um dia tocou-me a vez
de ir cunprir o serviço militar obrigatório 
e também de ir "defender a Pátria", 
neste caso, 
ainda mais longe, 
lá na verde e rubra Guiné, 
em plena África, 
quase trinta anos depois...
Nunca falámos, nem ele me deu conselhos: 
olha isto, olha aquilo,
cuidado com isto, cuidado com aquilo... 
Nme sequer se foi depsedir de mim,
que era longe a capital do império
e mais longe a terra para onde zarpava o velho Niassa...

Por pudor, oerguntar-me-ás, camarada ? 
Sim, por pudor...




Luís Henriques (Cabo Verde, São Vicente,  Mindelo, c. 1941)


Minto: ofereceu-me umas botas,

de cano alto, 
até ao joelho,
de montar,
porque sabia que na Guiné
havia mato, com capim alto, e pântanos, e cobras...
Agradeci-lhe a ternura,
mas não as levei:
pesavam que nem chumbo!

Voltei, "são e salvo" (?), 
e continuámos sem falar, 
da tropa, 
da guerra, 
das áfricas... 
Era lá coisas que os pais falassem com os filhos
op!?
Veio o 25 de abril, 
esqueci (?) a guerra, 
por um estranho sentimento de culpa, 
por pudor, 
por vergonha,
por estúpido preconceito talvez... 
Era politicamente incorreto, nesse tempo, 
falar-se da (ou até pensar-se na) 
maldita guerra colonial, 
ou do ultramar, 
ou de África...

Passaram-se os anos 
até que, em 1980, 
comecei a interessar-me pelas minhas vivências da Guiné, publiquei uma série de escritos no semanário "O Jornal"... 
e por tabela fui "redescobrir" 
o velho álbum do meu pai, 
já desconjuntado. 
amarelecido, 
comido pela traça e pela humidade...

Com o blogue, a partir de 2004, 2005, 
começámos a ter conversas de maior "cumplicidade", 
eu e o meu pai, 
como dois bons e velhos camaradas... 
Afinal, Cabo Verde e a Guiné, ali tão perto...

Publiquei com ternura as fotos dele, 
no Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, 
(as que restaram, ao fim de tantos anos...) 
e fiz diversos vídeos com entrevistas com ele, 
sobre esses tempos de "expedicionário"...

Criei, no nosso blogue, uma série,
"Meu pai, meu velho, meu camarada"... 
Tenho pena de, por razões de saúde, 
nunca o ter podido levar em viagem de saudade, 
de regresso, 
a São Vicente... 
Teimoso, ele nunca quis fazer uma artroplastia das ancas... 
A velhice (e o blogue) aproximou-nos
por volta dos oitenta e tal anos... 
Tarde, 
mas valeu a pena...



Luís Graça, Bambadinca, c. 1970

Provavelmente, sem o blogue, 
ele teria morrido, como morreu, 
há dois anos atrás, 
sem eu ter sabido mais nada 
sobre os três anos e tal de vida 
que ele passou na tropa e na guerra, 
os seus medos, temores, amores, desamores,
saudadades da terra e das uvas em setembro, 
as cartas que escreveu, 
centenas e centenas para os seus caramadas
que não sabiam ler nem escrever,
os versos de amor que mandou para a minha mãe,
os problemas de saúde, 
as amizades, 
as cumplicidades,
as histórias de vida daqueles homens,
abandonados no meio do Atlântico, 
em plena II Guerra Mundial,
e, mais tarde, os convívios do seu batalhão,
até que a morte os levou, um a um,
ano após ano...

Espantoso, ouvi o meu pai, horas e dias a fio,
falar de Cabo Verde,
mas eu continuei sem nunca lhe falar da Guiné...
Acho que vou levar esta mágoa comigo
na última viagem que ire fazer,
a do rio Caronte,
o tal que, segundo os gregos antigos, 
todos os homens vão ter que atravessar um dia , 
e que só tem uma margem, 
a do lado de cá,
viagem da qual ninguém regressa,
a não ser os heróis.

Afinal, boa pergunta: 
por que te calas, camarada ?


Lisboa, 20/4/2014 | Lourinhã, 28/5/2016

_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16134: (In)citações (91): "Um gajo não sabe o que foi a guerra colonial", diz Marcos Cruz, filho do Dr. Adão Cruz, um dos médicos do BCAÇ 1887 (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)

(*) Último poste da série > 9 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16067: Manuscrito(s) (Luís Graça) (83): As nossas máscaras, ontem e hoje... Apontamentos sobre o XI Festival Internacional da Máscara Ibérica (Lisboa, 6-8 de maio de 2016)



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