1. Comentário do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, deixado, em 24 de Julho de 2015, no Poste 14922 do nosso camarada Virgínio Briote:
Amigo V. Briote,
Relativamente ao desaparecimento do teu colega Leite1, trata-se de um caso do qual ouvi falar desde a minha infância, pois o homem que lhes servia de interprete e facilitador era o meu tio Samba Baldé - vulgo Samagaia - (ver Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda).
O meu tio, confrontado com problemas de uma Guerra de sucessão, após a morte de Branjame seu tio, afastou-se da zona de Canhámina e foi viver em Sare-Bacar, onde teria entrado em contacto com o comandante do pelotão estacionado no local. Foram presos na localidade de Kumakara, escassos quilómetros de Sare-Bacar (uma bolanha separa as duas localidades) e o objectivo da missão, aparentemente, seria o de promover a paz entre os guineenses e convencer a população deslocada a regressar com todas as garantias de segurança.
Enfim, o relato é o mesmo que acabas de escrever. A única diferença é que na versão que conhecia, não seria só uma mas seis pessoas, das quais 4 soldados metropolitanos e dois civis guineenses (um dos quais o meu tio), que em Dacar estiveram presos em celas separadas. Pouco mais de um mês depois, seriam soltos na fronteira perto de Sare-Bacar conforme tinham solicitado, acompanhados do Governador da região de Casamança.
Na verdade, entre outras causas, é de prever que o Senegal, mesmo não estando interessado em ajudar abertamente a guerrilha dirigida por Amílcar Cabral, também não estaria interessado no regresso para o território português (?) das populações refugiadas numa região de Casamanca, quase despovoada.
De notar que entre os refugiados contavam-se ganadeiros e chefes religiosos importantes que nenhum país inteligente pode dispensar de ânimo leve.
O meu tio acabaria por juntar-se aos outros e levar toda a família para a área de Kolda, na pequena vila (prefecture) de Dabo com um estatuto especial de refugiado de guerra.
Com um abraço amigo,
Cherno
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Nota do editor:
1 - Recordemos Virgínio Briote no P14922: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VII Parte): Clara; Apanhado à mão e Entre eles
O Leite era companheiro das mesmas lides desde há anos. De baixa estatura, magro, enfezado, aparência tímida e muita lábia, via-se que era desenrascado há muito. Estiveram no mesmo curso em Mafra, seguiram juntos no navio “Carvalho Araújo” para os Açores e separaram-se no cais de Ponta Delgada.
Encontraram-se, de novo no mesmo navio, no regresso ao continente.
Mobilizados para a Guiné, apanharam o comboio em Santa Apolónia, para o norte, para gozarem os dias de licença a que tinham direito e reencontraram-se em Campanhã para o regresso a Lisboa. Passaram os dias na capital, despedindo-se da vida boa que lá se vivia, até embarcarem no “Alfredo da Silva”. Na véspera do embarque fizeram questão de mandar vir lagosta e champanhe francês, no “Solmar”, ali nas portas de Santo Antão.
Davam-se, nem sempre ligavam às mesmas coisas, nem eram muito parecidos mas entendiam-se bem. O acaso fizera com que se juntassem nesse percurso. Já em Bissau, com o Capitão Marques, o Black e outros companheiros da viagem, separaram-se, até um dia destes.
Numa dessas visitas ao QG soube que o Leite tinha desaparecido.
A comunicação oficial era confusa, não se sabia ao certo se tinha desertado ou sido apanhado. Certo é que tinha sido levado para Dacar.
O Leite estava a comandar um pelotão reforçado em Sare Bacar, no norte, um pouco a leste de Cuntima, encostado ao Senegal, uma zona calma. O PAIGC, na altura, servia-se das fronteiras do Senegal como corredores de passagem para o interior que o Shenghor, problemas já tinha que chegassem.
Levava uma vida tranquila, mantinha boas relações com a população local. Terá sido abordado pela polícia, em território senegalês, quando, sentado a uma mesa, defrontava um frango de chabéu que lhe tinham preparado. Puseram-lhe as algemas e meteram-no num jeep a caminho de Koldá.
Depois de ouvido foi para a cadeia de Ziguinchor e por lá ficou umas semanas, enquanto se desenvolviam negociações, por intermédio da família, que o Estado Português não se meteu. A Igreja interessou-se, a Cruz Vermelha Internacional intercedeu, levaram-no para Dacar, onde foi presente a um juiz que decidiu recambiá-lo para Lisboa. Mas ele não queria, temia represálias, queria voltar a Sare Bacar. Semanas depois, acabou por ser entregue na fronteira às autoridades militares portuguesas. Soube isto da boca dele, dois ou três meses depois, na esplanada do tal Bento, momentos depois de ter sido chamado ao Governador-geral.
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Nota do editor
Último poste da série de 25 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14660: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (48): Avião amigo ou inimigo!?
Amigo V. Briote,
Relativamente ao desaparecimento do teu colega Leite1, trata-se de um caso do qual ouvi falar desde a minha infância, pois o homem que lhes servia de interprete e facilitador era o meu tio Samba Baldé - vulgo Samagaia - (ver Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda).
O meu tio, confrontado com problemas de uma Guerra de sucessão, após a morte de Branjame seu tio, afastou-se da zona de Canhámina e foi viver em Sare-Bacar, onde teria entrado em contacto com o comandante do pelotão estacionado no local. Foram presos na localidade de Kumakara, escassos quilómetros de Sare-Bacar (uma bolanha separa as duas localidades) e o objectivo da missão, aparentemente, seria o de promover a paz entre os guineenses e convencer a população deslocada a regressar com todas as garantias de segurança.
Enfim, o relato é o mesmo que acabas de escrever. A única diferença é que na versão que conhecia, não seria só uma mas seis pessoas, das quais 4 soldados metropolitanos e dois civis guineenses (um dos quais o meu tio), que em Dacar estiveram presos em celas separadas. Pouco mais de um mês depois, seriam soltos na fronteira perto de Sare-Bacar conforme tinham solicitado, acompanhados do Governador da região de Casamança.
Na verdade, entre outras causas, é de prever que o Senegal, mesmo não estando interessado em ajudar abertamente a guerrilha dirigida por Amílcar Cabral, também não estaria interessado no regresso para o território português (?) das populações refugiadas numa região de Casamanca, quase despovoada.
De notar que entre os refugiados contavam-se ganadeiros e chefes religiosos importantes que nenhum país inteligente pode dispensar de ânimo leve.
O meu tio acabaria por juntar-se aos outros e levar toda a família para a área de Kolda, na pequena vila (prefecture) de Dabo com um estatuto especial de refugiado de guerra.
Com um abraço amigo,
Cherno
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Nota do editor:
1 - Recordemos Virgínio Briote no P14922: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VII Parte): Clara; Apanhado à mão e Entre eles
O Leite era companheiro das mesmas lides desde há anos. De baixa estatura, magro, enfezado, aparência tímida e muita lábia, via-se que era desenrascado há muito. Estiveram no mesmo curso em Mafra, seguiram juntos no navio “Carvalho Araújo” para os Açores e separaram-se no cais de Ponta Delgada.
Encontraram-se, de novo no mesmo navio, no regresso ao continente.
Mobilizados para a Guiné, apanharam o comboio em Santa Apolónia, para o norte, para gozarem os dias de licença a que tinham direito e reencontraram-se em Campanhã para o regresso a Lisboa. Passaram os dias na capital, despedindo-se da vida boa que lá se vivia, até embarcarem no “Alfredo da Silva”. Na véspera do embarque fizeram questão de mandar vir lagosta e champanhe francês, no “Solmar”, ali nas portas de Santo Antão.
Davam-se, nem sempre ligavam às mesmas coisas, nem eram muito parecidos mas entendiam-se bem. O acaso fizera com que se juntassem nesse percurso. Já em Bissau, com o Capitão Marques, o Black e outros companheiros da viagem, separaram-se, até um dia destes.
Numa dessas visitas ao QG soube que o Leite tinha desaparecido.
A comunicação oficial era confusa, não se sabia ao certo se tinha desertado ou sido apanhado. Certo é que tinha sido levado para Dacar.
O Leite estava a comandar um pelotão reforçado em Sare Bacar, no norte, um pouco a leste de Cuntima, encostado ao Senegal, uma zona calma. O PAIGC, na altura, servia-se das fronteiras do Senegal como corredores de passagem para o interior que o Shenghor, problemas já tinha que chegassem.
Levava uma vida tranquila, mantinha boas relações com a população local. Terá sido abordado pela polícia, em território senegalês, quando, sentado a uma mesa, defrontava um frango de chabéu que lhe tinham preparado. Puseram-lhe as algemas e meteram-no num jeep a caminho de Koldá.
Depois de ouvido foi para a cadeia de Ziguinchor e por lá ficou umas semanas, enquanto se desenvolviam negociações, por intermédio da família, que o Estado Português não se meteu. A Igreja interessou-se, a Cruz Vermelha Internacional intercedeu, levaram-no para Dacar, onde foi presente a um juiz que decidiu recambiá-lo para Lisboa. Mas ele não queria, temia represálias, queria voltar a Sare Bacar. Semanas depois, acabou por ser entregue na fronteira às autoridades militares portuguesas. Soube isto da boca dele, dois ou três meses depois, na esplanada do tal Bento, momentos depois de ter sido chamado ao Governador-geral.
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Nota do editor
Último poste da série de 25 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14660: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (48): Avião amigo ou inimigo!?