
GUINÉ, IR E VOLTAR - XXV
Uns continuaram nessas guerras, outros noutras - 1
Depois de um curto período de adaptação em Braga junto da família, e sem outros motivos que o prendessem, Black resolveu esquecer tudo. Mudou-se para a terra dos Beatles, casou com uma inglesa de uma família estabelecida no comércio, não quis ficar no negócio, enveredou pela carreira de vendedor internacional, os filhos a nascer em Manchester, quando deu por si, estavam do tamanho dele. Nunca perdeu o contacto com alguns amigos de Braga, até que se decidiu pelo regresso. Vive só numa linda quinta em Vila Verde, nos arredores de Braga, onde de vez em quando é visitado pelos filhos e neta. Voltaram a encontrar-se em 2015, 50 anos depois de terem partido para a Guiné no “Alfredo da Silva”. Um reencontro inesquecível.
O Tenente Tomé da PM que o encontrou na Amura numa manhã de Janeiro de 1965, continuou a carreira, fez várias comissões, foi Ajudante de Campo em Moçambique do General Kaulza de Arriaga, o da operação “Nó Górdio”, meteu-se a fundo nos Abris todos até Novembro, enveredou pela política, foi secretário-geral de um partido da extrema-esquerda, deputado uma série de anos até se retirar. Muito tempo em major foi promovido a coronel depois de tudo sossegado.
Voltou a cruzar-se com o Leite, o alferes apanhado à mão em Sare Bacar, em finais dos anos 60, na Norma, uma empresa que prestava serviços de recrutamento e selecção, quando casualmente se encontraram para os psicotécnicos para a refinaria da Sacor em Leça da Palmeira. Depois voltaram a ver-se no Porto, na rotunda da Boavista, ambos já casados e com filhos. A última vez que se encontraram foi em meados de 80, em Braga, ia o Leite ao volante de um Mercedes.
O Capitão de Cuntima, deu-se a conhecer a muitos portugueses naquela fotografia1 do 25 de Abril em que aparece ao fundo com a mão na cabeça, numa das ruas da baixa lisboeta, aquando da sua rendição ao Major Jaime Neves e ao Capitão Salgueiro Maia. O poder revolucionário de então não esteve com contemplações, passou-o à reserva.
Chegou a ser director desportivo de um dos grandes da capital. Depois de terem regressado da Guiné viu-o de relance, em Lisboa, para os lados do Areeiro, os cabelos brancos, o resto quase na mesma.
O médico açoriano, aquele de Cuntima, foi para Coimbra, especializou-se, regressou a Angra, foi durante muitos anos o único médico a cuidar dos ouvidos, do nariz e da garganta dos açorianos. Reformou-se, mas há poucos anos ainda passava as tardes no consultório de Angra. Encontraram-se duas ou três vezes, uma delas em Angra.
O Didi! Quase uma dezena de anos sem o ver, pensou que devia ter regressado para os Brasis, lá para o Leblon dele. Uma manhã, já depois do tal Abril, viram-se frente a frente no Porto, no Hospital de S. João. Estás doente? Não, venho falar com um médico que está a tratar um parente meu.
Combinaram encontrar-se num daqueles dias na avenida da Boavista ainda mais uma vez. Dentro do carro de um deles, estiveram a pôr em dia acontecimentos passados e não é que a certa altura da conversa voltaram a trocar-se de razões por causa de um caso em Cuntima? Passou-lhes depressa o amuo, foram tomar um café ao Orfeusinho da rua Júlio Dinis. Um abraço, pá! Até sempre, Didi!
O BCav 490 continuou a encontrar-se todos os anos. Muitos encontros depois telefonaram a convidá-lo para o próximo encontro. À hora marcada, lá estava em Montemor-o-Novo. E o Didi não vem? O Didi morreu o ano passado.
O Coronel Fernando Cavaleiro, Coronel com letra grande, o melhor "alferes" do Batalhão de Cavalaria 490, não aceitou o método de escolha política para promoção ao generalato, passou à reserva como Coronel. Chegou a regressar à Guiné, para chefiar uma comissão de inquérito a um acidente com uma jangada que vitimou dezenas de militares no Corubal. Nos tempos que se seguiram ao 25/4, acusado de ter sido o promotor da manifestação da maioria silenciosa ao General Spínola, foi fechado a sete chaves em Caxias.
Num dia de Março de 2008 localizou-o num lar das Forças Armadas, em Oeiras. Vivo, o Coronel Cavaleiro? Ó meu caro senhor, o Senhor Coronel está aqui para as curvas, respondeu-lhe do outro lado do fio, o bem disposto telefonista.
Quer falar com ele? Aguente aí um pouco, faz favor, que eu vou ligar para o quarto. Atendeu uma voz de senhora. Sou um ex-alferes do BCav 490, estive em Cuntima. O meu marido deve estar no 1.º piso, sentado a ler um livro numa mesa com as cartas, à espera que apareçam parceiros para o bridge. É sempre assim, no fim do almoço.
E no dia seguinte em Oeiras, no IASFA (Instituto Acção Social das Forças Armadas), ainda não eram 14 horas, lá estavam eles, o Miranda e o Raimundo, os dois da operação “Tridente”, e o que o localizou, os três às voltas, a subirem e a descerem escadas, o senhor Coronel esteve agora aqui, procurem-no no 1.º piso. Uma sala, numa mesa ao fundo, de costas para a janela, talvez para melhor ver as cartas e as caras dos parceiros, um senhor que lhe pareceu ser ele, é o nosso Coronel. Nada que se parecesse com o Tenente Coronel que conhecera nos meados dos anos 60. Mas era mesmo ele, o Coronel Cavaleiro, talvez mais baixo uns centímetros e mais leve do que naqueles tempos. Sorriso gentil nuns olhos com manchas, ar algo débil, o Coronel de pé à frente de jovens de 60 e muitos anos. Sou o Miranda, meu Coronel, o Como, Farim, Comandos. Eu sou o Raimundo, o foto-cine da operação “Tridente”, as imagens que o Joaquim Furtado tem passado na Televisão fui eu quem as filmou. Meu Coronel, eu trabalhei poucos meses consigo, estive em Cuntima, na 489 do capitão Pato Anselmo. Pois, vocês têm que falar mais alto, o dedo apontado para um ouvido. A Guiné, bom, a Guiné foi uma doença que se entranhou em nós, Coronel Cavaleiro. Quarenta e tal anos depois voltámo-nos a descobrir uns aos outros, almoçamos uma vez por mês, falamos das nossas vidas de agora e da que levámos naquelas terras.
O Coronel, que naqueles anos media para aí um metro e oitenta e pesava seguramente oitenta quilos, à frente do trio visitante era o mais pequeno e mais magro. Estou com 70 e poucos quilos, eu que pesava 80 e tal, também estou com 91 anos, é altura de ter um pouco de cuidado. Leio, jogo bridge, ando um pouco a pé, olhem, ando aqui a ver os dias escorrer. Netos? Oito filhos, muitos netos, bisnetos, não me perguntem quantos.
Sim, vi na TV a Guerra do Furtado, só não entendi porque é que não transcreveu integralmente a carta, aliás muito pequena, que nós apanhámos a um mensageiro, aquela em que o Nino dizia que já não tinha nem gente nem população para aguentar a guerra no Como.
Sempre lúcido até morrer no verão de 2012, com 94 anos.
O Fininho, do bar de oficiais de Cuntima, meteu-se no negócio de electrodomésticos. Durante a década de 70 frequentava a zona do Carvalhido na cidade do Porto, ao volante de um Mercedes azul eléctrico. Continuou magrinho durante uns anos mais, agora está mais cheio e mais baixo. Nunca falta às reuniões anuais do 490.
O Tenente Capelão, o do Dornier ferido, passou à peluda, andou pelos Brasis, regressou a Portugal, deu aulas num seminário, tomou conta de uma paróquia, baptizou, casou e foi enterrando os paroquianos até chegar a vez dele.
Pois os vivos acabam por se encontrar, é só uma questão de os procurar. Temos que nos encontrar todos outra vez, nem que seja a última coisa que a gente faça.
É só uma questão de pedir ao Fonseca as direcções.
O João Parreira marcou um encontro para um almoço, na outra banda. Quando o barco atracou no Barreiro, figuras de cabelos brancos juntaram-se. O Mário Dias, o Valente pequeno e uma figura alta, de óculos, o Miranda, o lendário Miranda, conhecido também por Lejaune, uma figura da BD da Legião Estrangeira. O Miranda regressou à metrópole em Agosto de 65. Depois de um mês de férias foi para Moçambique e por lá viveu os conturbados tempos pré-independência. Depois deu às-de-vila-diogo, foi para a Rodésia. Também aqui sopraram outros ventos, nova retirada, desta vez para Lisboa. Com o jeito para a BD sempre na ponta do lápis.
Abraçaram-se todos, puseram as memórias em dia, descobriram coisas que tinham acontecido entre eles, que nem sonhavam. Depois mantiveram-se em contacto, trocaram fotos, livros, ideias daquele tempo. Até que um dia, sentado na cadeira da dentista, o telemóvel assinalou a chegada de uma mensagem.
Já cá fora, abriu a caixa das mensagens, era do Miranda a dizer que acabava de ser internado no Amadora-Sintra.
Que está aí a fazer, Miranda? Um cancro na bexiga, dizem eles. Vou ser operado amanhã.
O Tony Ramalho, estudante de medicina em 1963, foi mandado apresentar-se em Mafra para efectuar a recruta, após a qual foi destacado para a EPC em Santarém, onde tirou a especialidade das Panhard. Logo a seguir, que o tempo urgia, foi mobilizado para a Guiné como alferes miliciano, recebendo como missão dar instrução a naturais da então Província, organizando-os em companhias de milícias.
Companheiros assíduos, sempre que coincidia estarem em Bissau, na esplanada do Bento e nos jantares à mesma mesa do Hotel Portugal, falavam dos contrastes. A guerra ainda no princípio, mas já na brutalidade em mortos e estropiados pelas minas, armadilhas, emboscadas e flagelações, enquanto os olhos se perdiam nas maravilhosas paisagens, a presença de Portugal de mais de 400 anos praticamente ausente no interior da Província, de tal forma que, em certos locais, julgavam ser os primeiros brancos a pisá-los e a vê-los. António Ramalho, que perdera a mãe muito cedo, prometera-lhe que havia de ser médico. Fiel à promessa e ao seu desejo pessoal preparou-se para o ser. Quando regressou ao Porto deixou a música, amarrou-se aos books, não parou enquanto não se formou. Foi clínico geral, abriu consultório, especializou-se em Pneumologia, foi um dos autores do Programa Nacional contra a Tuberculose, dirigiu o serviço de Pneumologia de uma das unidades hospitalares do grande Porto, ainda há anos mantinha o lugar cativo no Dragão onde ficava mais tempo de pé que sentado, a vibrar com os golos do seu clube de sempre, e em 1975 ainda teve tempo para ser médico do Boavista do Pedroto. Já depois de reformado ainda o viu nas televisões, a falar nos cuidados a ter com o aparelho respiratório e a lutar contra o tabaco.
Em 2013 publicou as suas memórias daqueles anos. Deu-lhe um título actual “Guiné Mal Amada, o Inferno da Guerra”.
O Marcelino da Mata voltou a pegar na G3 no tempo do Governador Spínola. Fez um grupo especial de naturais da Guiné, o processo de promoção por distinção que tinha sido suspenso foi retomado, num ápice passou de cabo a sargento, cruzes de guerra incluídas, quase sem saber ler e escrever que a guerrilha exige outras habilidades. Em Abril de 74 estava em Lisboa e por cá ficou. Quando o filme de Abril estava a ser rodado queixou-se de que tinha sido torturado por “educadores da classe operária” no famoso RALis. Considerado como um dos militares mais condecorados por feitos em combate, aparece, às vezes, em cerimónias oficiais e em convívios.
Muitos anos depois, uma filha a estudar em Londres, quis saber mais sobre o pai, que lhe tinham dito que se apanhassem o Marcelino na Guiné o metiam num forno a arder. Dias depois recebeu a resposta.
"Conheci o seu Pai, então 1.º Cabo do Exército, em Maio ou Junho de 1965, em Brá, um aquartelamento do Exército Português a meia dúzia de quilómetros de Bissau, na estrada para o aeroporto de Bissalanca. Era um jovem com bom aspecto, ar de reguila, enérgico. Optou pelo Estado Português e como militar combateu o PAIGC, o Partido que encabeçava a luta armada. Foi a decisão que tomou, tal como milhares de Guineenses e, por isso, passou a ser um inimigo do PAIGC.
Fez parte dos primeiros Comandos que existiram na Guiné. Participou em inúmeras batalhas em praticamente todo o território. Foi sempre um militar muito valente e, por isso, várias vezes condecorado, desde a Cruz de Guerra (várias) até à Torre e Espada. O 25 de Abril encontrou-o acidentalmente em Lisboa, a independência veio logo a seguir em Setembro de 1974 e o seu Pai, tal como vários militares que se distinguiram na luta, ficou com a vida em perigo.
Muitos dos que lá ficaram foram fuzilados e ele escapou-se e fez muito bem porque se lá tivesse ficado já não era vivo há muito. Penso que hoje, com tanto tempo passado, se ele regressasse ao chão que o viu nascer, nada lhe aconteceria. Mas as previsões são apenas previsões, nunca se sabe o que poderia suceder. Quanto a essa história do forno, pode ser só isso, uma história apenas.
Podíamos estar aqui a falar do seu Pai o dia todo e, se calhar, ainda nos esquecíamos de muita coisa."
O Jamanca, o Sisseco, o Justo Nascimento, o Tomás Camará, o Bacar Jassi, o Bacar Mané e tantos outros envolveram-se a fundo na guerra contra o PAIGC. No fim, quando a paz foi assinada, ficaram-se por aquelas terras, confiaram nas promessas que lhes fizeram, não quiseram sair da Guiné. De qualquer maneira, abandonados às sortes. O PAIGC do Luís Cabral, o Presidente de então, prendeu-os. Uma rajada para o peito de cada um, nalguns casos com direito a assistência, a bater palmas, entusiasmada. Os cadáveres foram exumados quando Nino tomou o poder ao Luís Cabral, como a querer justificar o golpe da destituição.
"Acabo de ler depoimentos muito impressionantes que me fizeram recuar a minha infância em Xime, que você e muitos outros bem conhecem de outros tempos. Eu, com os meus quase 11 anos, e muitos outros, em 1974, vimos os militares do PAIGC em dois camiões de fabrico russo, um deles completamente tapado com um toldo. Passaram por Xime, de manhã, para Madina Cudjido. Passados uns 30 minutos ouvimos muitos tiros. Só que por volta da hora do almoço ouvimos dizer que foram lá fuziladas 8 pessoas. E das pessoas que nós ouvimos que tinham sido fuziladas - não sei se corresponde a verdade ou não - um deles era o tal Abibo Jau que esteve na CCAÇ 12 no Xime. A outra pessoa seria o Tenente Jamanca, da CCAÇ 21 que estava em Bambadinca.”
Extracto de uma carta de José Carlos Mussá Biai, naqueles anos menino residente no Xime.
O Sany, que lhe tratava do quarto e das roupas em Brá, depois de um episódio pouco claro em 1966, foi metido na prisão e expulso dos Comandos. Meses depois foi impedido de um capitão do QG. E para mal dele ingressou no grupo do Marcelino. Morreu em combate, esfacelado por uma granada.
O Kássimo, por feitos em combate ao serviço dos Comandos, ganhou um Prémio Governador, uma viagem à metrópole de uma semana. Antes de regressar à Guiné reencontraram-se no Porto, onde jantaram.
Depois, a vida dele levou grandes voltas. Em determinada altura foi destacado com os Comandos, Páras e Fuzos para Buba e terá sido combinado que os banhos nos balneários seguiam uma regra. Num dia, os primeiros eram os Comandos, a seguir os Fuzos e por fim os Páras. No dia seguinte, alterava-se ordem.
O Kássimo, num dia em que não tinha prioridade resolveu assumi-la. Seguiram-se empurrões, insultos, ameaças. Os camaradas não sabiam que com o Kássimo era preciso ter cuidado, muito cuidado. Foi à caserna, pegou na G-3 com o carregador metido, entrou pelos banhos e terá dito "vamos ver a ordem", antes de esvaziar o carregador da G-3, matando de imediato dois fuzos e um pára e causando um número indeterminado de feridos.
Detido, não há gente capaz de explicar os motivos que levaram à sua libertação. Os Comandos tudo fizeram para o desculpar, mas não o quiseram nas fileiras. Passou para o grupo do Marcelino. Tempos depois, envolveu-se numa rixa e matou um polícia (há quem fale em dois) em Bissau. Ninguém quer dizer também como é que se evadiu. Apareceu, já depois do 25/4, nas fileiras do PAIGC.
Depois, as informações divergiram. Uns diziam que, após novo sarilho com um dirigente da segurança do PAIGC, tinha aparecido morto. Outros, que tinha sido segurança de um importante elemento do PAIGC (da mesma etina) depois de ter eliminado dois (?) polícias e que terá desertado realmente para o PAIGC,. A informação, que parece ser mais fidedigna, diz que o António Kássimo está vivo e vive em Bissau, a trabalhar para uma empresa de um português.
Adulai Jaló foi dos primeiros Comandos. Esteve em Angola, onde participou num estágio, participou na operação "Tridente", na Ilha do Como, entre Janeiro e Março de 64, foi soldado dos GrsCmds "Panteras"(64/65) e "Diabólicos"(65/66) e fez parte do Batalhão de Comandos da Guiné até morrer em Morés, em 23/12/1971.
Um camarada africano relatou: "Uma operação da 1.ª e da 2.ª CCmds Africanos foi a Morés. Eu fiquei com um grupo de reserva no aeroporto de Bissalanca, à espera que algum grupo pedisse a nossa ajuda. No primeiro dia não aconteceu nada, mas o grupo do Mamasaliu Bari sofreu várias baixas e pediu reforço, porque não podia sair do local. Tinha o grupo reduzido e foi, então, que o meu grupo foi lançado de helis, com o objectivo de contactar o grupo do Demba Chamo Seca e formarmos um bi-grupo para tirarmos o Bari daquele local. Depois de seguirmos uma linha de cajueiros, em Morés, encontrámos um Grupo de Comandos chefiado pelo comandante da operação, que era o Capitão Zacarias Saiegh. (...) Fiquei junto ao capitão, ele disse que estava no local desde o meio-dia, à espera que os outros grupos se reunissem a ele. E que íamos dormir naquele local, que ninguém nem nada tirava os Comandos dali. Mas eu tinha dúvidas. Tínhamos tropa a mais naquele local, tanta que podia atrapalhar. Quando eu estava nos Comandos em Brá, no tempo dos comandos velhos, nós saíamos sempre em grupos pequenos e era mais fácil executar uma operação, havia menos barulho e menos riscos.
Também só dávamos tiros quando era pela certa. Quanto maior é o número de pessoal envolvido mais difícil a operação ter sucesso, sem baixas. E ensinaram-me naqueles tempo, nos Comandos em Brá, que sucesso era chegar de surpresa, atacar e retirar logo, com o material que apanhávamos.
Mas, desta vez não estava a ser assim e a nossa dificuldade maior estava na coordenação dos nossos comandos. Eu, nessa altura, estava a recordar essas memórias, quando ouvimos alguém a chorar, parecia criança. Cada vez que menino chora, Capitão Saiegh dizia para ninguém abrir fogo, que devia ser população a regressar para os acampamentos para arranjar comida para meninos. Logo aconteceu um soldado, chamado Jaquité, do grupo do alferes Tomás Camará, que trazia uma HK 21, com uma fita de balas muito comprida, que rolava no corpo durante o andamento. A HK 21 é uma arma que tinha um bipé. Ele tinha-a apontado para fora dos cajueiros e viu um grupo fardado que vinha na nossa direcção. Então, ele disse ao alferes Tomás Camará, "meu alferes, disse para não fazer fogo, vem ali um grupo armado na nossa direcção e agora?" O Tomás disse "se vem gente abre fogo" e ele fez uma rajada muito comprida para eles. Quando quis sair dali, para mudar de local, uma roquetada acertou-lhe em cheio, teve morte imediata. As morteiradas começaram a chover, umas atrás das outras, saímos todos dali, a correr em direcção aos cajueiros. Não sei como foi, tinha deixado as minhas cartucheiras no local onde estivemos deitados. E agora, tinha que ir buscá-las lá. Tinha que ser, voltei para trás.
Eu, antes de sermos atacados, perguntei ao Adulai Jaló do que é que ele achava de irmos dormir naquele local, onde o Capitão Saiegh tinha dito. O Adulai respondeu-me que era melhor, para não termos contacto com o IN durante a noite e não disse mais nada. O Adulai era um soldado muito corajoso, era de 1961, tinha combatido sempre na guerra desde o início. Conhecemo-nos em Farim, éramos da mesma etnia, os nossos pais conheciam-se há muito tempo. Era mais antigo nos Comandos que eu, foi um dos que foi para Angola com o Alferes Saraiva e outros. Nunca foi graduado porque era o indisciplinado número um em todo o Batalhão de Comandos. Nenhum comandante de grupo o aguentava mais que um mês.
Levavam-no ao comandante a dizerem que não o podiam comandar, o comandante de Companhia mandava-o para outro grupo e foi assim conhecendo quase todos os grupos, sempre a fazer as mesmas coisas. Até que um belo dia, o comandante da Companhia ficou com ele. Quando o capitão sai, ele sai com ele, é o guarda-costas do Capitão Saiegh. Quando o capitão não sai, se ele quiser também não sai. Por isso ele não foi graduado em nada e foi-lhe oferecido o posto de 1.º Cabo, para que os soldados o pudessem respeitar.
Quando cheguei ao local, o Adulai estava sentado ao lado do Capitão Saiegh e, depois de ouvir o drama de passar a noite naquele local, fui juntar-me aos meus colegas. Então, quando começou a chuva de morteiros, levantámo-nos para abandonar o local e, depois de recuperar as minhas cartucheiras, vi um corpo deitado à minha frente, que na precipitação de sair dali nem reparei quem era. Depois voltei atrás e vi que era o Demba Demo, guarda-costas de Sada Candé. Era um cadáver.
Quando eu e mais companheiros, numa grande confusão, estávamos a sair da zona dos cajueiros, onde a chuva de granadas de morteiro continuava a cair, ouvi um gemido. A voz pareceu-me do Adulai Jaló. Quando eu andava à procura, perguntando quem era que gemia, ouvi a voz do Adulai, a dizer que era ele que estava ferido. Encontrei-o e ele estava sentado. Quando me pus a observar o que ele tinha, estava muito escuro, o PAIGC lançava de vez em quando very-lights para nos ver melhor, reparei que o Adulai tinha as pernas, dos pés às ancas, esfaceladas e partidas. Achei que ele não iria viver mais que uns minutos. "Não me deixem aqui", disse-me ele. "Não te deixo cá, ficas garantido, vou buscar reforço, para te levar para um local mais seguro". Corri para um colega meu e disse-lhe que o Adulai estava com feridas muito graves e que estava também um corpo perto dele, não descobri quem. Arranjei sete homens que vieram comigo até ao local, sempre a corrermos, e quando olhei para trás só estava um comigo, o 1.º Cabo Mussa Djamanca, da 1.ª CCmds. Então, ouvi alguém dizer-nos para levarmos o Adulai e o corpo do Demba Demo, enquanto iam procurar outro ferido que gemia também na zona dos cajueiros.
Para levarmos o Abdulai éramos 4 pessoas. Como os pés estavam desfeitos, não podíamos arrastá-lo pelo chão, duas pessoas pegaram nos braços e levámo-lo até debaixo de um mangueiro, onde estava o comandante, o Capitão Saiegh. Quando depositámos o Adulai no chão, com todo o cuidado, ele perguntou quando vinha o heli buscar os feridos. "Agora não pode ser, Adulai, só de manhã". "Coitados de nós, vamos morrer, não aguentamos."
Nós na altura, tínhamos três feridos deitados neste local. Eram eles, o Adulai Jaló, o Samba Bangura e o Male Fo, todos atingidos nas pernas. Como gemiam alto, pedi ao enfermeiro, que era um Comando também, chamado Samba Tala e pedi-lhe para dar umas picadas neles todos, para as dores. Jaló foi o primeiro a quem o enfermeiro deu uma injecção e ouvi-o dizer Ala Acbar, Ala Acbar, Ala Acbar. Quando acabou de falar em nome de Deus três vezes, calou-se de uma vez, boca e olhos abertos, olhando fixo. Notei que o Adulai já tinha morrido. Então, abandonei o local e fui ao encontro do Capitão Zacarias Saiegh".
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Nota
1 - Imagem da Net - Créditos ao autor que não consegui identificar
(Continua)
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Nota do editor
Poste anterior de 3 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15439: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXIV Parte): "Regresso, dois anos depois" e "Tantos anos depois: por quê recordar?"